domingo, 19 de setembro de 2010

Tudo que eu gosto (3) - Parte 1

... é imoral.

E a imoralidade é um requisito essencial, de todos, o único obrigatório. Existe um gosto especial em contrariar a moral, que deriva da sua própria soberania, da ilusão do senso comum, e da batalha constante pela liberdade de ser e sentir, sem que a opressora sociedade lhe marque em brasa o estigma de pária. Acima de tudo, é a luta pelo direito de pensar.

É comum a confusão entre moral, ética e direito. O direito, de certo modo, deriva da moral, uma vez que as leis são editadas por representantes da sociedade que abraça a sua própria moralidade. Mas, por incrível que possa parecer, o direito evolui mais que a moral, viva o sistema democrático. Ao eleger representantes das minorias, parcelas da sociedade tem a chance de se fazer ouvir, de usar todos os argumentos que possuem em favor de sua causa, o que pode resultar numa mudança legislativa favorável. Muitas vezes não percebemos, mas a lei pode ser um instrumento de defesa contra a moral.

Eu sou defensora ferrenha da ética. Não deixa ela de ser também uma das dimensões da moral, mas não convém confundir as nomenclaturas. A ética é o compromisso interior, e, pra mim, nada é mais necessário do que honrar suas convicções e valores. A ética não é imposta, ela é pessoal e intransferível. Apenas você tem o poder de julgar seus atos e convicções em cima daquilo que construiu em seu interior como o que é certo e errado, bom ou ruim. É a honestidade em estado puro, e o único guardião da ética é a consciência individual, bendita seja!

Muito diferente da coerção democrática ou do julgamento da consciência é a moral da sociedade. A moral é o compromisso exterior, a padronização. Não me parece racional aceitar os padrões morais, pois em si eles representam um retrocesso. Enquanto o pensamento evolui com o tempo, as regras de conduta precisam do tempo pra ganhar sua força. Explico. Enquanto o pensamento é imediatista - a gente pensa quando pensa, e convivemos com as descobertas e avanços filosóficos e tecnológicos no momento em que eles acontecem, a moral caminha no sentido contrário, enraizando os ditames sociais na medida em que eles se repetem (e se repetem), criando a atmosfera de familiaridade (e da família, socorro!), e por fim, o traço do caminho a ser seguido.

A moral por muito tempo se confundiu com a religião. É muito mais fácil impor tais e quais costumes quando eles derivam de uma existência maior, do próprio Criador. Basta ver as sociedades orientais em que a religião se confunde não só com a moral, mas com o direito e o próprio Estado. Deus, com o nome que tiver, é o caminho simples pra aceitação geral de uma série de regramentos, por um motivo básico: a ética é o caminho mais difícil. É inerente ao ser humano buscar uma influência externa pra sua vida, uma vez que o autoconhecimento e o compromisso interno são tarefas tortuosas, ninguém aceita se julgar, reconhecer seus erros e buscar um caminho de correção por si só. A religião e a moral que dela resultou são, desta forma, conseqüência do reconhecimento inconsciente do egoísmo e falta de respeito próprios da natureza humana, o que nos faz exigir uma influência superior para nos forçar a conviver em sociedade de forma pacífica.

A moral cristã é um reflexo nítido desse pensamento, basta analisar os 10 mandamentos e o pecados capitais. Todos criam uma moral baseada no sacrifício de desejos individuais em favor do próximo. Podemos concluir então que essa moral deriva da vontade contraditória da pessoa em contrariar seus instintos, e da incapacidade de realizar essa tarefa sozinha, através da ética.

(continua...)

8 comentários:

Rob disse...

Tenho que dizer que senti falta do que é imoral nos seus desejos. Da imoralidade em si. Achei interessantes as dissociações feitas, mas um tanto duvidosas, Afinal, de certa forma, o direito foi colocado à parte, como derivação da moral, e a ética de um outro lado. Não seria também uma derivação ela? Entendi, ou acho, o que se quis dizer. As divisões de abrangência foram da moral (macro e psicológica, consciente e inconsciente), o direito (de um coletivo, mas que foi colocado como mais benevolente) e a ética (de uma classe, na minha opinião. E não estou falando de classe de trabalhador, mas classe no sentido de contexto em que cada um se encaixa na sociedade, que pode ser enriquecida individualmente).
Nem por isso, essas 3 forças deixam de serem simplificadas pelo estudo de conjuntos matemático, com grandes áreas de interseção, quase que um dentro do outro. Afinal, a moral é o geral, onde se um é a favor de uma liberdade, outro acredita que isso seria completamente prejudicial. E dessa forma a resultante é o nula, se não quando em momentos em que exista uma força maior, ou interesse, tendendo para um dos lados.
Quanto à moral e religião, não concordo que por muito tempo se confundiram. Pelo contrário, acho sim que elas eram iguais. Desde a antiguidade, não existe sociedade sem religião. A moral sempre foi a religião. Então, o que eu vejo de fato é que essa dissociação nasceu sim com a Era Moderna, com a criação da boemia, com o surgimento do estado laico. A moral só se desassociou da religião, quando o homem começou a questionar a necessidade de uma religião. Ou começou a se julgar no direito de escolher. E ainda digo mais. E se tem uma coisa mais puramente humana é a religião, mas, ainda assim, não conseguiu e nem conseguirá, creio eu, se libertar da moral. Afinal, a moral é um conceito lido por nós enquanto sociedade ocidental, porém, o que tínhamos em comum, até então, com civilizações que julgávamos amoral, como indígenas, se não a religião, que nunca deixou de permear nosso imaginário?
Peculiarmente, o que são ateus se não aqueles que fazem questão de declarar a todo pulmão que Deus não existe e provar tal? E o que seria isso se não uma religião e seu dogma?
Pensando nos índios, mais uma vez, fiquei tentando conceituar eles em algo. E se não eram moralistas, ainda assim tinham ética, própria de cada tribo e que regia a relação entre as tribos. Então, será que a Ética não seria aí o item mais geral, que se disfarça de mais individual? Ou sempre os julgamos amorais por confundirmos moral com pudor? Algo a se pensar.

Chan. disse...

Ainda que se possa visualizar a ética de um determinado grupo, ela é exercida individualmente, ao contrário da moral, que é sempre coletiva, sempre um julgamento externo.

A ética que você atribuiu aos indígenas, por exemplo, nada mais é que moral. É ética em seu julgamento externo.

E sim, há de se abstrair a moral do conceito puritano, há mais lá, e por isso, moral e religião não são a mesma coisa.

No mais, get a blog!

Ju Marques disse...

Interessante pensar na moral como exteriorização da ética, precisando de um tempo pra enraizar...

Ficaria ultrapassada essa moral, retrógrada!

E, se a moral não acompanha o "rítimo" da ética, surge a necessidade do comportamento IMORAL, mas não necessariamente anti-ético.

Interessante, muito interessante!

Felipe Miranda disse...

Falar de ética pra mim é muito "spinozo"
prefiro falar de tudo que engorda que é bem mais gostoso..

ininterrupto disse...

A moral também é reflexo de uma construção cultural dentro de uma civilização. O Homem por si só não é humano. A construção da ética querendo ou não, ainda é relacionada com os costumes, regras e vivências de um resultado histórico-social. A moral infelizmente é inevitável em qualquer grupo organizado. Concordo com o texto e acredito na ética para construção de indivíduos pensantes-sensatos, porém vejo uma saída para uma construção melhor da inevitável moral através da adaptação e aproximação da identidade verdadeira de um povo. Fica evidente a necessidade de uma concretização da cultura e a revisão contínua desta, até para o indivíduo ter uma facilidade maior de atingir um processo de libertação e logo uma individualidade, ou posteriormente uma construção da sua ética. De que maneira isso poderá ocorrer? : Arte. A arte é uma constante documentação do tempo, pois todo homem é influenciado constantemente pelo seu tempo, paisagem, diálogos. Portanto, quanto mais cultura desenvolvida dentro de um bloco, estado ou grupo, mais desenvolvido o bloco será, pois a revisão será mais plural. A história já nos provou que quanto maior a cultura é desenvolvida continuamente, maior será o poder de realização de um império ou estado. A unificação dos povos através de uma moral verdadeiramente construída, fará com que a sociedade, qualquer que seja, se una em prol de uma identificação, acelerando a vontade e o progresso dos processos através de uma vontade peculiar. Esta vontade peculiar comum nivelará os homens e fará também com que ele respeite mais o próximo ao se identificar mais com o próximo. É uma moral sem agonias, construída justamente com os costumes reais de uma civilização e não os impostos por anos de exploração imperialista.

Rob disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rob disse...

Acho que a Arte é um meio um tanto restritivo. Se buscada pela vertente das obras de arte, essa evolução é excludente, e se buscada pela vertente relativista, da arte em si, e não da obra, o que faz a arte não são as coisas, mas o olhar. Não creio que o interruptor seja visível para todos de forma tão fácil para ligar a visão artística de mundo quando bem entender. Se não se sabe ver a arte nem existe o desejo de fazê-lo, de que adianta? Acho que o foco realmente é cultural. Acho que ,enquanto a res pública não for tomada pelo povo como sua, e assim dela cuidar e se apropriar "devidamente", existirá um grande empecilho. Para os servidos pelo "público", é uma questão de consciência e de respeito do comum, mas como esse objetivo pode ser alcançado pelos excluídos. Claro que sempre existe a opção de criar ilhas de convívio com pessoas conscientes, mas na esfera pública, como consciência geral de um povo, não creio que essa evolução caminhe sem um bem-estar social.

Ju Marques disse...

Cadê o "Tudo o que eu gosto (3) - Parte 2" ????